Exclusivo: homicídios envolvendo acidentes com carros e motos de luxo crescem 72% em SP após mudança de lei
Levantamento do SBT mostra que casos de homicídios culposos dispararam em São Paulo, reduzindo punição aos motoristas e dificultando justiça para as vítimas
Derick Toda
Nathalia Fruet
Celso Costa Jr.
Thiago Dell'Orti
No primeiro semestre de 2024, a quantidade de boletins de ocorrência de homicídio culposo em acidente de trânsito registrou recorde em 10 anos no estado de São Paulo.
Nos seis primeiros meses de 2015, foram 1.810 registros, ante os 2.054 deste ano – um aumento de 13%. Ao todo, em uma década, foram 32.582 acidentes que resultaram na morte de ao menos uma vítima, média de nove homicídios culposos por dia nas ruas paulistas.
As informações são da Secretaria de Segurança Pública e foram obtidas pelo SBT via Lei de Acesso à Informação e via Portal da Transparência.
Flexibilização na lei de homicídios no trânsito
Em dezembro de 2017, uma mudança no Código de Trânsito Brasileiro (CTB) possibilitou que um motorista sob efeito de álcool que cometesse um homicídio fosse enquadrado por crime culposo, e não no doloso.
O primeiro acontece quando o delito é praticado sem intenção e prevê pena de dois a quatro anos de prisão. O segundo ocorre quando o autor do acidente assume o risco de matar, com pena de seis a vinte anos de detenção.
Na visão de Maurício Januzzi, professor de direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e especialista em Direito Penal e do Trânsito, essa alteração tornou a lei mais branda. Para ele, a nova regra considera que a imprudência ao volante – como consumo de álcool ou disputa de racha – não significa que o motorista assumiu o risco de matar, tornando mais difícil uma punição severa.
De acordo com o levantamento do SBT, comparando o primeiro semestre de 2024 com o mesmo período de 2018, logo após a mudança da lei, houve um aumento de 33,3% no registro das ocorrências como homicídio culposo, enquanto os casos registrados como doloso sofreram queda de 72,7%.
Carros de luxo
Casos como o de Fernando Sastre de Andrade e Igor Ferreira Sauceda, motoristas que em suas Porsche são acusados de matar, respectivamente, um trabalhador de aplicativo e um motociclista, tiveram o boletim de ocorrência inicialmente registrado como homicídio culposo.
O jornalismo do SBT analisou mais de 63 mil informações de registros de ocorrência de motoristas que se envolveram em crimes de morte culposa, omissão de socorro e disputa de rachas no estado de São Paulo. Com a mudança da lei, houve um aumento de 72,3% de casos de homicídio culposo por motoristas dirigindo carros e motos luxuosos.
Nos seis primeiros meses de 2018, foram 94 motoristas de veículos de luxo em acidentes que acabaram em morte. No mesmo período de 2024, houve um salto para 162 envolvidos.
Ao todo, em uma década, 2.013 motoristas de carros ou motos de luxo se envolveram em acidentes de homicídio culposo, no estado de São Paulo, de acordo com o levantamento.
Para a promotora do Ministério Público de São Paulo e presidente do Instituto Pró-Vítima, Celeste Leite dos Santos, o enquadramento incorreto tanto do crime que teria sido doloso, mas foi registrado como culposo, e o inverso, atrasa a compreensão do Poder Judiciário, "que já é lento" e, por consequência, a justiça para a vítima.
Outro agravante no enquadramento do culposo, quando a abordagem correta seria o registro como doloso, é o tempo de prescrição. O prazo para um caso ser julgado por homicídio doloso no trânsito é de 20 anos. Já o culposo, oito anos, de acordo com o Código de Trânsito Brasileiro (CTB).
"Muitos crimes pela demora prescreveram. Eles tinham provas, mas não puderam ser punidos pela data do crime", diz Celeste.
Na prática, de acordo com o jurista Maurício Januzzi, os motoristas imprudentes que tiram a vida de uma pessoa passam a querer responder pelo culposo, e não no doloso.
A defesa dos motoristas envolvidos em acidentes fatais
O SBT News pediu entrevista com os advogados que representam Fernando Sastre e Igor Sauceda, mas eles não quiseram se posicionar. O espaço segue aberto e a reportagem será atualizada.